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Post mortem para os vivos
“Quem sofre mais? Uma mãe que perde a filha ou uma filha que perde a mãe?”, perguntou encostando o ombro no batente da porta “Óbvio que a mãe que perde a filha”, disse a mulher “Mas uma criança que cresce sem a mãe não sofre mais, e é mais indefesa, do que uma mãe, já adulta, mais capaz de lidar com problemas?” “É que o amor da mãe é incondicional, se tiver que haver uma escolha entre mãe e filha, a primeira, se puder, dá a vida pela última” “Deixe-me mudar a pergunta para o seguinte: ao invés de ‘quem sofre mais’ coloquemos ‘quais consequências advém da perda’ ” “Até mesmo porque o sofrimento é algo muito individual”, pontuou a mulher “Absolutamente individual, ou mais ou menos individual?”, questionou mudando o ombro com o qual se enconstava no batente da porta “Absolutamente individual, porque as experiências são únicas”, respondeu ela “Ou relativamente individual, considerando que conseguimos classificar uma série de emoções em comum em todo e qualquer indivíduo, tipo raiva, tristeza, alegria, luto?”, questionou novamente, e novamente alternando o ombro se encostou no batente da porta “O fato é que ninguém aprende a perder”, ao que levantou da cadeira em que estava sentada e foi se olhar no espelho da sala “Mas a vida é isto: ganhar e perder; as pessoas aprendem na marra; é inevitável perder”, pontuou e coçou a barba “É que não é natural a perda de um filho. As mães são programadas para proteger os filhos, de modo que quando um filho morre, o sentimento de ter falhado advém naturalmente. É a origem do sentimento de culpa”, esticava a pele de seu olho diante do espelho “Certamente na maioria dos casos, doenças, assassinatos e outras fatalidades quaisquer que atingem os filhos estão para além do controle da mãe. Tenho uma tia que passou por isto” “Como foi?” “Meu primo, acho que tinha uns 20 anos à época, foi encontrado morto em seu quarto, por um tiro na cabeça. Foi dado como suicídio. Desde aquele dia, nunca mais quis ir naquela casa, embora tenha voltado, anos mais tarde, mais uma vez. Do que pude observar da minha tia, no processo de reorganização da vida ante a ausência do meu primo, entendi que não há esquecimento na perda de um filho; nunca haverá esquecimento; até mesmo porque todas as nossas experiências, cheiros, cores, toques, estão armazenados em nós; ela nunca o havia esquecido; uns quinze anos depois era normal ocorrer dela falar sobre meu primo, tipo o que gostava de fazer, de modo bem natural...aprende-se a suportar a dor, cuja intensidade vai diminuindo; a frequência de choro do corpo diminui; a alma acostuma-se a viver com aquele abismo; daí vieram os netos desta minha tia, e o tempo exigido ocupou ela com o cuidado de novas vidas; não se trata de substituição; nunca haverá substituição de um filho; trata-se da reorganização da vida que se tem para viver”.
06 de janeiro de 2019 |
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Augustus |