Coração, a criança-coveira

 

Aqui jaz Osíris, que assim disse sobre o erro de Finados:

O nosso corpo é feito de sentido.

O apego nas coisas externas é seu modo de funcionamento.

Por isto, quando se morrem, os apegados derrubam tantas lágrimas.

Mas uma vida que faz derramar lágrimas é eterna

 

Coração olhava para a lápide e dizia para si mesma:

“Mais uma vez...mais uma vez vou limpar uma nova lápide neste cemitério...não é justo, não é justo”

Coração era uma criança. Embora passasse fome, isto logo se via pela sua miudeza, tinha agilidade de felino para ajudar sua mãe nos serviços de limpeza do cemitério.

“Vamos logo com isto Coração”, gritou sua mãe de ao longe.

“Tá bom!!!”, gritou Coração de volta.

Resmungou, molhou o pano no balde de água, resmungou novamente, e de novo resmungou pela terceira vez, quando, terminando de esfregar a lápide, acabou por notar aquela inscrição sobre o erro de Finados, da defunta Osíris.

Resolveu tirar uma foto com o celular.

“Click”

E saiu correndo, deixando o balde com o pano lá mesmo.

Trovões, chuva forte, guarda-chuva contra o vendaval, até que chegou no primeiro degrau da escadaria principal de sua escola.

Meio que havia decorado o que estava escrito na lápide, mas pegou o celular novamente para checar se cada palavra tinha sido devidamente gravada em sua memória. Parecia aquela mensagem muito certa, correta.

“Olhá lá a criança-coveira! Criança-co-vei-ra! Criança-co-vei-ra!”, passou uma turma de crianças que faziam bullyng com Coração. Apesar do bullyng, Coração era integrada em sua turma, e respeitada pelas rápidas respostas que dava para as provocações: “Vá seus cabeças-de-formiga. In-se-tos! In-se-tos!”.

A aula começou. Outra aula de outro professor veio, e mais uma, até que chegou o recreio.

Mas o hino que se costumava tocar para anunciar a hora do lanche não tocou.

As crianças, acostumadas naquela escola a se levantar e colocar a mão no peito, sobre o coração, e cantar o hino, permaneceram sentadas.

Houve um início de bagunça pela situação, mas logo os professores se impuseram para que os alunos permanecessem sentados.

Coração estava na última carteira, da última fileira, ao lado da janela. Gostava de sentar ali para visualizar todos da sala. Sentia-se com certo poder em razão da posição de sua carteira, que lhe possibilitava atirar elastiquinhos nas orelhas dos colegas sentados na frente. Era arteira. E tinha uma vivacidade que parecia contraditória em alguém que vivia, diariamente, tão perto da morte.

Minutos mais tarde, as sirenes de ambulância começaram a invadir os ouvidos de todos, e de Coração.

Apareceu uma cabeça na porta da sala e disse para o professor e os alunos:

“Matusalém morreu. Estava tomando um copo de água em sua sala e morreu!”

Todos se entreolhavam. Queriam dizer algo uns para os outros. Mas aquela frase dita assim, meio que juntando o fim da vida com o simples e corriqueiro ato de tomar água deixaram todos meio que em uma pausa reflexiva: “Morreu tomando água?!”

“Foi um infarte! Fulminante! Do nada!”

Não era bem do nada. Matusalém, ou simplesmente Matusa, como os alunos gostavam de o chamar, tinha quase 1 século, andava vagarosamente, sempre passando a impressão que mais era alma penada do outro mundo do que propriamente um ser encarnado nesta dimensão.

“Matusa morreu!”, gritava Otavinho

“Morreu o Matusa!”, gritava Biro-bira

Otavinho e Biro-bira eram colegas de classe de Coração, e sempre estavam em lados opostos em qualquer situação.

“Está Morto!”, pensava Matilde, a outra colega de Coração.

Coração, por sua vez e do seu jeito, operou aquela inscrição na lápide da defunta Osíris, sobre o erro de Finados:

O nosso corpo é feito de sentido.

O apego nas coisas externas é seu modo de funcionamento.

Por isto, quando Matusa morre, os alunos e professores derrubam tantas lágrimas.

Mas Matusa é eterno

Otavinho, Biro-bira, Matilde, Coração, Eu, Você, todo mundo, todos nós, todos os humanos, pensamos:

“Matusa Vive!”.

Tum-tum-tum...tum-tum-tum...tum-tum-tum...”Ma-tu-sa Vi-ve!”...tum-tum…

Tum-tum-tum...tum-tum-tum...tum-tum-tum...”Ma-tu-sa Vi-ve!”...tum-tum…

 

06 de novembro de 2018


 

Augustus

A Festa