Covardes e Corajosos: todos iguais?

 

Da janela do carro, via-se a praça e seus frequentadores. Ficava em frente ao Tribunal e, mais ao longe, era possível ver a Catedral.

O Estado, a Igreja, e a praça - esta, a res publica (coisa de todos) por excelência.

Dentro de um lugar mais isolado da praça, mais perto da movimentada rua, viciados reuniam-se, ali mesmo, na luz do dia, para se anestesiarem com suas drogas.

Era quarta-feira. Em torno de 11h:00, horário em que havia forte congestionamento de veículos naquele trecho, o que permitiu Bernardo observar a cena que se desenrolava: todos de pé, enfileirados um ao lado do outro, estavam os viciados e seus doentes corpos - todos franzinos. Talvez uns 7 pacientes, destacando-se no meio deles 1 menina, que devia ter uns 15, 16, 17 anos, talvez, e um senhor já com seus 50, 55 anos. Difícil definir uma idade, mas basta dizer que era uma menina e um senhor, os quais era abordados, cada qual, por um policial.

Um dos policiais parecia normal verificando a identidade da menina, mas o outro...neste se via claramente o falar e gesticular de um modo exacerbado.

O policial que falava com o senhor era forte e grande - correspondia, mais ou menos, ao dobro do tamanho deste. Devia ter uns 30, 35 anos. Se não era verdade, poderiam facilmente difamá-lo dizendo que tomava bombas. Tinha, de fato, o porte que se espera dos melhores soldados, guerreiros, lutadores. Devia sofrer em não poder exercer sua potencialidade mortal em uma guerra; talvez esta frustração extravasasse em suas atitudes.

Já o senhor, como dito, era um doente. Estava vestido de camisa e calça social, o que dava a impressão de que trabalhava. Talvez um garçom dos muitos bares do centro da cidade?

O senhor argumentava com o policial.

De repente, e foi isto que fez Bernardo começar a prestar mais atenção naquela cena, o policial tacou uma espécie de cachimbo, violentamente, contra o chão, ao lado do senhor. Meio que discursava o policial...parecia dar uma bronca naquele senhor, um doente já prisioneiro das drogas.

Mas o senhor não parecia se intimidar e continuava a argumentar com o policial, que estava a uns 3 metros de distância.

De repente, explosivamente, desferiu o policial um chute muito forte na barriga daquele senhor, que imediatamente caiu para trás.

"Que absurdo!!!", pensou Bernardo.

O trânsito andou um pouco, Bernardo deixou um carro entrar na sua frente, e outro...acabou permanecendo um pouco mais ali, naquela posição.

Nisto o senhor se levantou. O policial se aproximou, o senhor entregou o documento, e o policial entregou o documento para o outro policial verificar. Como se o chute não tivesse acontecido, notava-se novamente um diálogo entre o policial agressor e o senhor doente.

O policial parecia se afastar daquele paciente-doente que havia chutado. Mas o senhor, novamente de pé, parecia continuar a falar contra o que o policial que o chutou falava. O policial ia em direção ao próximo drogrado para verificá-lo, mas como o senhor falava, ele tendia a voltar para perto deste.

O trânsito andou. Bernardo, que tinha pensado em sacar o celular enquanto o carro não andava, para filmar aquela cena, que provavelmente se intensificaria, foi lerdo. Não filmou.

Mais adiante, pensou se não tinha deixado de filmar e colocar o video na rede social por covardia. Tentou jogar logo a culpa no trânsito, no não dever de ajudar um desconhecido que sofre uma agressão aos seus olhos, e etc...Mas logo também sua mente sussurava: "Covarde...covarde..."

Sim, naquele momento Bernardo teve certeza que foi um covarde, igualmente ao policial agressor. Igualava-se a este, que vergonha sentia. "Devia ter feito o que era certo, ter defendido aquele pobre coitado da violência desmotivada, era muita injustiça chutar cachorro morto..."

Foi trabalhar. Almoçou. Voltou a trabalhar. Jantou. E, já na cama, pronto para dormir, lembrou de sua matinal covardia. Não conseguia dormir. Resolveu assistir um documentário.

Após 2 horas de explicações históricas sobre a origem dos regimes políticos sangrentos (as sempre questionadas explicações históricas, sabia Bernardo), entendeu que só tinha um jeito de conseguir dormir em paz: dali em diante gravaria com seu celular qualquer violência que presenciasse e espalharia de imediato nas redes sociais...

Quase fechando os olhos, murmurou para si mesmo: "...o preço da liberdade é a constante vigilância dos vigias...existem vigias bons e ruins, mas os ruins devem ser identificados e aprisionados..."

Em meio a um sonho, acordou encharcado de suor.

No sonho, Bernardo lutava.

Lembrou imediatamente de alguns ensinamentos de Freud. Começou a buscar um sentido para aquelas imagens oníricas, um conteúdo latente que teria criado aquele conteúdo manifesto em seu sonho. "Desejo...desejo de mais coragem", concluiu. "Ou seria desejo de dominar, de poder...", questionou-se. Bernardo se esforçou mais, sabia que era mais do que isto.

Veio em sua mente, então, uma parte do sonho em que seu onírico "Sensei" (seu "Mestre") lhe revelava um dos princípios das artes marciais. Dizia o Sensei: "auto-defesa...o conhecimento das artes marciais deve ser usado para a auto-defesa...o uso deste poder para além da própria segurança, de modo desmotivado, e contra pessoas indefesas, chama-se covardia..."

"A covardia pode ser por omissão ou por ação", divagava...e continuou: "Mas e a coragem?", e logo lembrou-se da cena de abuso e violência que tinha presenciado e do documentário. Ficou pensando se o policial que apenas verificava os documentos da menina e do senhor era corajoso por omissão, no sentido de não imitar a violência desmotivada, a violência pela violência...

Ao final, concluiu assim:

Bernardo foi covarde por omissão, deveria ser mais corajoso por ação;

O policial agressor era covarde por ação, desmotivadamente agrediu um ser mais fraco e indefeso;

O senhor e a menina eram doentes e já detentos, prisioneiros das drogas;

E o outro policial, que verificava os documentos, este não se podia saber o que era, pois não houve testemunho da sequência dos fatos. Mas, pelas hipóteses, daquilo que se tinha presenciado, talvez pudesse ser, por omissão, um covarde ou um corajoso.

Bernardo optou em pensar que o outro policial era corajoso por omissão, tipo aquelas pessoas que no passado se recusavam, ou sabotavam, os abusos institucionalizados dos regimes autoritários…

De certo modo, Bernardo compreendia o policial violento, e não porque foram covardes, cada um a seu modo. Mas porque gostava de lutar, tendo em si uma nata agressividade. Pensou, também, que o policial agressor era tão desenfreado, descontrolado, quanto a sua vontade como o eram aqueles pobres drogados. "Agressividade, vontade, controle", pensava.

Levantou e, às 04h:00 da manhã, foi treinar equilíbrio e meditação na academia.

 

14 de novembro de 2018


 

Augustus

A Festa